Guerra

Cara Sociedade, eu desisto. Desisto de agradar-te e a todos que te constituem, desisto de aceitar-te com tuas injurias e injustiças, com tuas lamúrias e com tua resignação, desisto de tentar enquadrar-me em teus padrões, pois eles são absurdos e quanto mais se tenta, mais se afunda num mundo desesperançoso, num mundo cheio de dor e sofrimento. Um mundo que ignora céus azuis e águas frescas, um mundo que ignora o perfume de uma flor e paga por uma essência fabricada. Um mundo que não liga para o sol ou para a lua, a menos que esses sirvam para gerar energia ou para contribuir com uma guerra fria. Um mundo frequentemente em guerra, uma guerra que se não for literal com suas bombas, canhões e sangue, acaba sendo aquela que passamos todos os dias. Uma guerra constante contra tudo e contra todos. Estamos cada vez mais sozinhos, temos medo do contato, temos medo dos outros. Temos medo de nós mesmos. Prendemos-nos numa máscara, nos tornamos o que não somos, nos enchemos de roupas de griffe e jóias de ouro para ofuscar nossa essência imunda e egoísta, para tentarmos esconder nossa sujeira aparentando uma superioridade inexistente. Oh, capitalismo, venha a nós. Que o que compremos seja personificado e ganhe vida, e que nós mesmos nos tornemos objetos consumíveis. Oh, violência, venha mostrar a fortaleza física e esconder a fraqueza mental, e que uns desprezem os outros, e que uns machuquem os outros, para darmos continuidade a esse ciclo de dor e de morte. Guerra. Guerra contra nós mesmos, guerra contra o mundo. Guerra singela que se esconde na penumbra de um modelo de sociedade que só faz crescer. E que ninguém se importe com ninguém, e que continuemos vivendo com um espelho em nossa fronte para vermos nosso próprio eu, ou então que vendem nossos olhos para que não vejamos o que nos cerca. Afinal, o que importa a mim aquilo que não me afeta? Que se danem os outros. Prender-me-ei em meu mundo impenetrável e fugirei dos olhares e dos carinhos, pois tenho medo daquilo que pode arrebatar-me. Pois tento dominar tudo a minha volta, e fujo da verdade, e fujo do amor, pois aquilo que é tão puro me amedronta e é mais fácil lidar com tudo aquilo de sujo e de imundo. E que o dinheiro seja meu deus, e que a televisão seja minha cultura, e que o computador seja meu cérebro, e que meu coração se transforme em pedra e eu não enxergue o que me cerca. Que eu não veja toda essa desgraça e que eu faça dessa solidão crescente a minha força. Que eu me esquive daquilo que é bom, que eu fuja dos abraços e dos olhares, que eu fuja das pessoas e de mim mesma. E que eu sempre esteja armada com pedras ao aproximar-me de alguém. Que eu torne-me também um robô, e que eu deixe minha essência de lado, pois pouco importa o que sou ou quem sou. Importa ao mundo o que aparento ser. E que eu traga essa guerra pra minha própria casa todos os dias e que carregue essas energias pra todo canto. Não me importa o amor, não me interessa o que é puro. E que eu me deixe ser controlada pelo governo e que eu deixe que eles amassem meu cérebro e me façam esquecer o que é pensar. Que toda essa hipocrisia faça também parte de mim. Que não existam mais laços nas famílias e que os relacionamentos sejam puro interesse. Que a amizade seja falsa. Que nas escolas se aprenda a violência e que todos a pratiquemos. Que a vida não passe de uma existência vazia e sem sentido, e que ninguém mais viva de verdade. Que ninguém sinta mais nada. Que nos tornemos robôs e aceitemo-nos nessa condição. Que sejamos apenas uma imagem. Que a natureza seja destruída e que tudo seja artificial, até mesmo os sentimentos. Robôs, sociedade! Transforme-nos em robôs. E que a guerra continue dentro e fora de nós, que ela seja eterna, que o sangue escorra e as lágrimas também. Robôs! Tornar-nos-emos robôs!

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